(Hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo)

26/12/05

Autografia - visto e revisto


Miguel Gonçalves Mendes filmou Mário Cesariny durante três anos. O resultado desse trabalho é o documentário Autografia. O filme começa como acaba, a uma voz, no princípio, a duas, no fim. Dizendo um poema, o mesmo, Autografia: “Sou um homem / um poeta / uma máquina de passar vidro colorido / um copo uma pedra / uma pedra configurada / um avião que sobe levando-te nos seus braços / que atravessam agora o último glaciar da terra”. A voz do início é a de um actor – poderia ser a do realizador que, à partida, de Cesariny apenas conhecia a obra. E é talvez por isso que apenas no fecho do filme, à voz do actor se junta a voz do próprio Cesariny. Um caminho foi percorrido entre os dois momentos. Um caminho de aproximação, de conhecimento, construído como um objecto de amor, no sentido em que o é tudo aquilo que se deixa contaminar pelo Outro, sabendo que a única verdade que lhe é acessível é da sua contingência e não tanto a de uma natureza ou de uma essência que pudesse ser fixada. Autografia, o documentário, não é uma biografia, nem tão pouco o acto de tomar o peso a uma obra ao jeito solene e balofo dos documentários institucionais - de resto, Cesariny mostra a sua aversão por esses actos de reconhecimento público que celebram a obra e esquecem o homem: “depois deixam-me sempre ir para casa sozinho...”, diz o poeta. É um filme habitado por uma figura, respirando com ela.
No filme, Cesariny fala de tudo um pouco: da obra, do amor, da sua condição homossexual, da família, da vida sob a ditadura salazarista, do movimento surrealista... Mas, falando de todas essas coisas, é sobretudo do presente que fala. De um corpo envelhecido que não hesita em expor-se, que desfia os seus fantasmas e as suas conquistas. De um corpo sozinho, feito das solidões somadas dos amigos que morreram e das paisagens que foram desaparecendo: a Lisboa dos cafés ou o Bairro Alto das prostitutas e dos marinheiros – uns “príncipes”, como Cesariny os designava. Mas também de um corpo selvagem, atento e quase infantilmente predisposto a descobrir e a criar beleza – como no momento em que trepa uma estrutura de ferro enterrada na areia duma praia da margem sul e ali se deixa ficar suspenso...
Cesaeriny diz que tem saudades de voar – era assim que se sentia ao escrever – mas recusa-se a fazer “versos porque sim”. “A poesia foi um grande fogo que ardeu...ficaram as cinzas. Acabou!”, diz a dada altura. Desde há muitos anos, “pelo lado mais artesanal que tem” e por não tratar de “coisas muito chatas”, ao contrário da poesia, foi a pintura o que sobrou.
A maior parte do filme decorre na casa onde Cesariny reside com uma irmã. E esta última acaba por se transformar numa peça chave de Autografia. É vê-la, numa cena formidável em que o poeta recorda as suas aventuras sexuais, completamente atarantada atrás da vidro da varanda não conseguindo esconder o desconforto que a exposição do irmão lhe provoca: “A falar destas coisas...”, diz. E depois quando Cesariny a chama para junto de si e recordam a figura severa do pai, ou quando lhe pergunta o que acha da sua homossexualidade. A câmera está cerrada sobre eles, e aí se deixa impudicamente ficar

O poeta que deixou de voar

“Haverá uma idade para nomes que não estes / haverá uma idade para nomes / puros / nomes que magnetizem / constelações / puras / que façam irromper nos nervos e nos ossos dos amantes / inexplicáveis construções radiosas / prontas a circular entre a fuligem / de duas bocas / puras”. Nestes versos retirados de “a antonin artaud” condensam-se alguns dos principais motivos da poesia de Mário Cesariny: a revolta, o desejo, o amor. A revolta contra um “modo funcionário de viver” – como escreveu Alexandre O’ Neill no mais belo poema de amor da língua portuguesa, “Um adeus português” – contra uma realidade policial e mesquinha – a do Estado Novo, em Portugal – contra o desencantamento do mundo. O desejo de criação de um outro nível de realidade, em que os sentidos fossem restituídos a um estado selvagem de percepção, capaz de destrinçar a beleza – é esse, no seu sentido mais puro, o objecto do surrealismo. E o amor como um horizonte sempre presente, construído na evocação ou na projecção de um TU – e grande parte da poesia de Cesariny comporta essa dimensão dialógica interna.
Nascido em 1923, Mário Cesariny começa por se aproximar em meados dos anos 40 do movimento neo-realista, mas depressa se afasta. É a descoberta do movimento surrealista francês e, sobretudo, o encontro com André Breton que marcarão a sua vida. Em 1947 participa na fundação do Grupo Surrealista de Lisboa, mas divergências com alguns dos seus membros levam-no a afastar-se e a fundar um novo grupo, Os Surrealistas, no ano seguinte.
É nesse quadro que se dedica a várias experiências inspiradas pelas experiências dadaísta e surrealista francesas: as tentativas de fusão da escrita com a pintura, com a utilização de colagens, por exemplo; a escrita automática, de inspiração freudiana; e a escrita colectiva, cujos resultados os surrealistas apelidavam de “cadáveres esquisitos”.
Hoje, aos 81 anos, Cesariny já não escreve. “Porquê? Para quem?”, pergunta em Autografia. E já nem sabe se continua a rever-se no que disse no “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”: “queria de ti um país de bondade e de bruma / queria de ti o mar de uma rosa de espuma”. Mas para quem, como eu, começou com ele a ler poesia, o reconhecimento dessa precariedade das coisas só o engrandece. “Lembra-te / (...) que todas as estradas que abrimos / irão achando sem fim / seu ansioso lugar / seu botão de florir / o horizonte / e que dessa procura / extenuante e precisa / não teremos sinal / senão o de saber / que irá por onde fomos / um para o outro / vividos”.