(Hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo)

13/06/05

Eugénio de Andrade

Atravessou o século da crise do Sentido, do sujeito pulverizado, feito em cacos - à imagem do incessante questionamento becketiano: "Agora quem?Agora onde?Agora quando"- como um cavaleiro galante, cheio de uma impertinência serrana polida pelos salões portuenses.
Atravessou tudo isso como se tudo permanecesse sólido e evidente em si mesmo; como se a escrita fosse um acto de transparência a uni-lo ao mundo. Daí o seu lirismo. Nesse campo, a sua obra só tem paralelo no século XX português na de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Coração Habitado
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Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
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Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
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Alguns pensam que são as mãos de deus,
- eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
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Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
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(do livro Até Amanhã)