(Hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo)

27/03/08

Uma escola para cada um

Nos séculos XVII e XVIII, o movimento iluminista fez o Futuro descer do céu para a terra. Até aí, o caminho da humanidade era para Deus: a vida era uma etapa para atingir uma outra, mais verdadeira e redentora, debruada a leite e mel. O pensamento ocidental guiava-se, mais ou menos atavicamente, pela máxima de Santo Agostinho: “Somos cá em baixo viajantes que suspiram pela morte.”
Sob o impulso dos avanços científicos de seiscentos, os iluministas cunham um ideal de humanidade que se realiza na história, que é agora um tempo aberto. Aos seus olhos, a vertigem já não vinha das alturas, mas, sim, das maravilhas do progresso. Foram eles que rasgando um horizonte de perfectibilidade humana, fizeram da educação um estandarte. “Sapere Aude!” – é a expressão lançada por Kant. Só através da educação o Homem poderia sair da menoridade (Kant) e superar o obscurantismo (Voltaire), realizando plenamente as suas potencialidades. Era na Razão que os iluministas pensavam, a Deusa-Razão – que o foi na França revolucionária de finais do século XVIII. O homem emancipado, para retomar a expressão de Kant, seria aquele capaz de fazer uso da sua razão. Daí – da necessidade de a cultivar e desenvolver – a importância atribuída à educação.
Não era, no entanto, no homem enquanto sujeito individual que os iluministas pensavam. Dizer homem era dizer humanidade. Era o todo, e não as partes, o que estava no centro do seu pensamento. Ainda assim, essa abstracção em movimento tinha, à cabeça, quem a representasse, uma classe social em plena afirmação: a elite burguesa, interessada em substituir o privilégio do sangue pelo privilégio do mérito. Nas suas mãos, a educação tornar-se-ia uma arma de afirmação social, conferidora de estatuto e garante de respeitabilidade.
Um privilégio, pois. Ao alcance de poucos. Rui Ramos traça-nos este quadro para o final do século XIX e princípio do século XX, em Portugal: “A educação tornara-se a marca essencial de pertença a uma classe respeitável – a daqueles que podiam deixar os filhos adiar o momento de se empregarem. Era o mesmo que ter criados, sem dúvida a melhor forma de distinguir classes sociais".
A democratização e a massificação do ensino são, em larga medida, na Europa ocidental, produtos do Estado social, ou Estado-Previdência, do após-guerra. E, em Portugal, uma das conquistas do 25 de Abril de 1974. Os números são reveladores: a taxa de escolarização das crianças com 14 anos era em 1972/73 de 37,7%, enquanto que em 1989/90 apresentava um mínimo de 57%, no distrito de Braga, e um máximo de 91%, no distrito de Portalegre.
São maioritariamente as crianças oriundas dos estratos sociais mais baixos que, chegados ao sistema para cumprirem uma escolaridade obrigatória de nove anos (a partir de 1986), confrontam a escola em crise de autoridade – em transição de uma autoridade incontestada, cujas principais marcas eram, nas salas de aula, o estrado alto, que entronizava, separando-o dos restantes, o detentor do saber, o professor, e a presença sancionatória dos símbolos do poder político e religioso; para uma espécie de autoridade negociada, em resultado da aplicação dos princípios do jogo democrático – com novos desafios: diversidade de públicos, com novos comportamentos e interesses, e com significativas diferenças de grau cultural de partida.
A acção conjugada daqueles factores – crise de autoridade e novos desafios – cria as condições para uma crise de identidade da escola. Concebida como veículo de transmissão cultural, com a finalidade de assegurar a integração das novas gerações na sociedade e, por via disso, salvaguardar a continuidade da mesma, a escola aparece hoje como que envergonhada desse papel que lhe incumbe. Perdeu solidez. Parece titubear. Concebida para garantir um ensino igual para todos, dispõe de recursos humanos e materiais, e de uma organização pedagógica em conformidade. Supõe que o mesmo ponto de partida é partilhado por todos. Ironia das ironias, descobre que um ensino colectivo e igual para todos – um ideal democrático, sublinhe-se – não assegura, afinal, uma verdadeira igualdade de oportunidades e pode mesmo limitar-se a reproduzir as desigualdades sociais, económicas e culturais.
Por outro lado, a escola ressente-se do questionamento incessante dos pressupostos sociais da sua acção e do seu saber. A esse nível, é particularmente significativo um certo discurso da pós-modernidade em torno de questões como o poder e a hegemonia cultural. Expondo e criticando o carácter hegemónico da transmissão cultural realizada pelos grupos maioritários ou pelas elites – e, não por acaso, a mera invocação destas parece não poder fazer-se, hoje, sem que um rubor de vergonha nos invada o rosto – abriu caminho para um relativismo anódino que tudo faz equivaler: o que a criança já sabe ao que a criança ainda não sabe; o senso comum ao saber conceptual; eventualmente, todos os valores e os comportamentos, tomando-os como igualmente aceitáveis. Em consequência, o próprio princípio da avaliação – e não apenas a forma como é concretizado – como parte integrante do processo educativo formal, parece ser posto em causa, porquanto pesa sobre ele o ónus da violência simbólica, da punição. E mesmo o currículo, enquanto instrumento orientador e regulador do processo educativo formal, aparece como uma estranguladora camisa-de-forças. A este respeito, é ler o que dizem Cortesão e Stoer, sociólogos da educação: a escola “geria (e gere) penalizando, através da avaliação, a dificuldade ou a incapacidade de atingir os níveis de aprendizagem impostos, bem como o desinteresse pelo que o currículo oficial considera importante adquirir. Em consequência, foram-se agravando as já conhecidas situações de insucesso, bem como o abandono e, portanto, mesmo o não cumprimento da escolaridade obrigatória” - a escola enquanto devoradora de criancinhas, portanto.
No limite, este discurso sobre a escola e a educação formal parece apontar para um novo horizonte: a escola para cada um. Uma escola como uma espécie de comunidade maiêutica onde, imunes a qualquer constrangimento social, todas as crianças dos seis aos quinze anos pudessem traçar os seus próprios percursos educativos, desenvolvendo áreas do seu interesse – fossem elas as profecias do Bandarra, o mundo asséptico, bem vestido e sem cérebro dos “Morangos Com Açúcar” ou os cestos divinatórios da Zâmbia – e escolhendo os mestres (a internet, claro, côngrua que dispensa do pensamento) que melhor as orientassem nesse percurso de autoconhecimento. Um coelho branco anda por aqui a saltar à espera da sua Alice...

Exige-se da escola que compense a sociedade. Que seja um trampolim para amanhãs que cantam. (Tontos que nunca na vida enfrentaram uma chusma de criaturas imbecilizadas dentro de uma sala de aula!) E para isso nada como endoutriná-los de pequeninos nos altos valores da democracia. Serve-se-lhes, para o efeito, uma área curricular de Formação Cívica. Boas intenções, infelizmente armadilhadas a cada instante por um discurso educativo que, nos últimos trinta anos, mais não fez do que propalar equívocos, confundindo liberdade com permissividade, democracia com laxismo, abertura à diferença e ao novo com esquizofrenia. O resultado, ou muito me engano, ou ficou nos antípodas das melhores intenções, com a complexidade a ceder lugar ao facilitismo, a ludicidade a ganhar terreno ao esforço, os valores a diluírem-se num caldo politicamente correcto de relativismo cultural...

A educação já não salva do mundo. Tornou-se parte integrante dele, tão analfabeta e cobarde como tudo o resto nesta piolheira - razão tinha aquele, morto há cem anos! - sempre parolamente assoberbada pelo novo, pelo moderno, sem nunca verdadeiramente o incorporar.
O tempo fechou-se sobre esta voragem de futuro, que mais não é senão um presente contínuo sem esperança, atávico, vil.