(Hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo)

01/10/06



"O que havia a fazer agora, para a missão ser coroada de êxito,era afastarem-se da costa e chegarem ao meio do golfo antes do romper da aurora. As Isabéis não estavam muito longe - À sua frente e à sua esquerda, señor - dissera Nostromo, cortando o silêncio. Quando a voz dele se calou, a quietude colossal que se seguiu, sem uma luz, sem um ruído, pareceu afectar os sentidos de Decoud como uma droga potente. Havia alturas em que nem sabia se estava acordado, se a dormir; como um homem perdido no limbo do sono, nada via e nada ouvia. Até a sua própria mão, colocada diante dos olhos, parecia não existir para eles. A mudança súbita de toda a agitação, perigos e paixões, de todas as cores e sons da terra firme para a mansidão do golfo era tão radical que mais lhe parecia a morte, se o seu propósito não fosse a sobrevivência dos seus ideais. E eles lá iam vogando no limiar da paz eterna, imagem nítida e resplandecente, como um sonho vívido e sobrenatural de coisas terrenas que podem perseguir as almas já resgatadas pela morte à atmosfera confusa do remorso e das esperanças. Todo o corpo de Decoud foi sacudido por um súbito arrepio, embora a corrente de ar que o atingira fosse morna. A sensação estranhíssima que tinha era a de que a sua alma acabara de voltar da escuridão envolvente onde terra, mar, céu, montanhas e rochedos eram como se nunca tivessem existido."


Joseph Conrad, Nostromo
(Publicações Dom Quixote)