No romance "Terra Sonâmbula", do moçambicano Mia Couto, há uma voz espectral, sibilina. Muindinga, menino órfão com nome e pai emprestados, que nada sabe sobre as suas origens, incorpora essa voz. Nesse gesto, através da estória que essa voz conta, Muindinga começa a (re)inventar-se, preenchendo o vazio do seu passado. Confunde-se nos lugares que ela evoca, inscreve no seu corpo desejante a memória de outros corpos cercando o seu. Ao princípio, Muindinga acredita que esse passado pode mesmo ser o seu e o da sua família. Mas pouco importa saber se é realmente assim. O que conta é que ele revive através desse passado. Se mergulha nele é para que, fortalecido, se aguente melhor à tona de água. Na verdade, é o presente e não o passado que aquela voz lhe oferece – e esse, ele pode agarrá-lo, materializando-o, na mão do velho Tuahir, seu pai emprestado, que o conduz ao longo da estrada devastada pela guerra.
Na busca desse menino moçambicano reconhece-se facilmentente uma necessidade universal: essa de nos situarmos no mundo, desenhando-lhe as fronteiras, conhecendo e experimentando os seus pontos de fuga. Parte do que esse mundo é está já para trás, nas nossas costas. Precisamos de inventários, de cronologias, de séries de objectos e de ruínas que sedimentem a nossa ideia de continuidade, de radicação extensiva no tempo e de pertença – a um lugar, a um grupo, a um modo de vida...
Mas o passado é um constructo; um país que forjamos para nós próprios, à exacta medida dos nossos sonhos e desejos, mas também das nossas frustrações e atavismos. Molda-se em função da nossa identidade presente, e da forma como nos projectamos no futuro. E, por isso, dir-se-á melhor se enunciado no plural: passados e não passado. Os elementos que seleccionamos são os que melhor simbolizam essa identidade, os que melhor falam por ela. Devemos sublinhar que transportamos esses elementos connosco, que os vamos inventando dentro de nós à medida que nos afastamos deles? Que a materialidade desses elementos, quando a evocamos, é muitas vezes imaginada, irreal?
It is vain to dream of a wildness distant from ourselvs. There is none such.
It is the bog in our brains and bowels, the primitive vigor of Nature in us, that inspires that dream.
I shall never find in the wilds of Labrador any greater wildness than in some recess of Concord, i.e. than I import into it.
It is the bog in our brains and bowels, the primitive vigor of Nature in us, that inspires that dream.
I shall never find in the wilds of Labrador any greater wildness than in some recess of Concord, i.e. than I import into it.
(Thoreau)
Entre os nossos paraísos idílicos e as imagens construídas deles vai uma linha de desfocagens e porosidades crescentes. O jogo de espelhos entre uns e outros é, normalmente, frustrante: os objectos que vimos, cuidámos, guardámos (como feixes que nos guiam até nós de sentimentos) são já outros, integralmente nossos. Fizeram o seu caminho, transformaram-se e transformáram-nos. O fio que os liga ao passado vivido faz agora desvios abruptos de trajectória, perdeu toda a linearidade.
No entanto, reconforta-me a existência desses objectos. Lembro-me agora de um fio de cabelo teu, guardado no meu caderno