Revi-o há uns dias: Fallens Angels, de Wong Kar-Wai. É um dos filmes que mais amo! Recupero, sem alterações, um texto antigo.
Flashes de um tempo fugaz
Concebido a partir da história sobejante de "O Expresso de Chungking", em "Anjos Caídos" regressam, apenas mudando de pele, as personagens atordoadas pela luz que se cruzam no labirinto urbano de Hong Kong. Em vez dos polícias solitários e sem nome (eram números: 223 e 663), temos um assassino profissional cansado de retirar balas do próprio corpo. O jogo de espelhos prossegue entre a empregada de fast-food que, em "O Expresso de Chungking", se enchia da limpidez melódica da canção "California Dreamin", dos Mamas and Papas, para em segredo compor a casa de um dos polícias, e a gravidade sonolenta com que, em "Anjos Caídos", a Agente limpa o quarto do Killer e reconhece o terreno para as suas investidas. É neste plano que se pode falar, como fez o cineasta, de um efeito "contrapontístico" – vistos em conjunto, os dois filmes assemelham-se a peças de um retábulo, que se relançam e iluminam incessantemente.
Um romantismo pulverizado
A opacidade das personagens fá-las brilhar na noite, mas é um brilho mortificado. Têm a solidão dos cometas "com a súbita cabeleira em chamas", como escreveu Carlos de Oliveira. As identidades estão mascaradas pela profusão de alcunhas (Killer, Baby, Cherrie) e diluídas num passado tão fugidio como o presente. Os nomes, é apenas o confronto fortuito com esse passado que os vem relembrar - o encontro de Killer com um antigo colega de escola, no autocarro.
São seres bloqueados e em permanente desequilíbrio. O confronto irresoluto entre a urgência emocional e o terror da partilha, mergulha-os na apatia. Quando se encontram ficam mudos, imobilizados: as vozes interiores sobrepondo-se e definindo os contornos da nuvem de néon que os envolve e que nenhum gesto vem romper. Toda a intimidade que consentem é uma intimidade diferida, fragmentada - a Agente conhece os hábitos de Killer por vasculhar no seu lixo. Ocupam os mesmos espaços em horários desencontrados, e alimentam-se desse rasto até à exaustão: a mulher que se masturba junto à juke-box, com a música de Laurie Anderson a sublinhar a aridez da ausência.
Na segunda história de "Anjos Caídos" este romantismo pulverizado, em cacos de vidro, cede lugar à velocidade e ao burlesco no corpo de He – o rapaz que, de noite, abre à socapa as lojas do bairro de Tsimshatsui. Não é uma excrescência, é a iniciação à queda. O seu momento decisivo é o da morte do pai de He: momento em que o corpo ganha peso e cai, desamparado, no abismo do presente. Só então, verdadeiramente, as histórias se intersectam para desenharem um possível novo começo, como ramagens de uma árvore infinita.
O espaço e o tempo
Não há espaço, só tempo. Os homens habitam em lugares esconsos, junto a vias-rápidas e viadutos de metro sobrepostos. Foi essa rarefacção que levou Wong Kar-Wai a optar pela utilização de lentes de grande angular e a impor à câmara um deslizar permanente para as superfícies espelhadas. Em ambos os casos, o efeito produzido é de distensão. E de distensão e retardamento se faz também o tempo em "Anjos Caídos", como se, de alguma forma, fosse absolutamente necessário refrear a vertigem e a aceleração para deixar ver, destacando-as de um fundo indistinto, quase como num balão de BD, as percepções e os estados emocionais das personagens.
Em entrevista ao Público, por altura da estreia em Portugal de "O Expresso de Chungking", o realizador confessava que a fonte de inspiração para "Fallen Angels" (sua, e de Christopher Doyle, director de fotografia) era um programa radiofónico nocturno de Hong Kong. Nenhuma imagem seria mais justa que essa para o descrever: o filme voga na imponderabilidade, pairante, quase musical.
Flashes de um tempo fugaz
Concebido a partir da história sobejante de "O Expresso de Chungking", em "Anjos Caídos" regressam, apenas mudando de pele, as personagens atordoadas pela luz que se cruzam no labirinto urbano de Hong Kong. Em vez dos polícias solitários e sem nome (eram números: 223 e 663), temos um assassino profissional cansado de retirar balas do próprio corpo. O jogo de espelhos prossegue entre a empregada de fast-food que, em "O Expresso de Chungking", se enchia da limpidez melódica da canção "California Dreamin", dos Mamas and Papas, para em segredo compor a casa de um dos polícias, e a gravidade sonolenta com que, em "Anjos Caídos", a Agente limpa o quarto do Killer e reconhece o terreno para as suas investidas. É neste plano que se pode falar, como fez o cineasta, de um efeito "contrapontístico" – vistos em conjunto, os dois filmes assemelham-se a peças de um retábulo, que se relançam e iluminam incessantemente.
Um romantismo pulverizado
A opacidade das personagens fá-las brilhar na noite, mas é um brilho mortificado. Têm a solidão dos cometas "com a súbita cabeleira em chamas", como escreveu Carlos de Oliveira. As identidades estão mascaradas pela profusão de alcunhas (Killer, Baby, Cherrie) e diluídas num passado tão fugidio como o presente. Os nomes, é apenas o confronto fortuito com esse passado que os vem relembrar - o encontro de Killer com um antigo colega de escola, no autocarro.
São seres bloqueados e em permanente desequilíbrio. O confronto irresoluto entre a urgência emocional e o terror da partilha, mergulha-os na apatia. Quando se encontram ficam mudos, imobilizados: as vozes interiores sobrepondo-se e definindo os contornos da nuvem de néon que os envolve e que nenhum gesto vem romper. Toda a intimidade que consentem é uma intimidade diferida, fragmentada - a Agente conhece os hábitos de Killer por vasculhar no seu lixo. Ocupam os mesmos espaços em horários desencontrados, e alimentam-se desse rasto até à exaustão: a mulher que se masturba junto à juke-box, com a música de Laurie Anderson a sublinhar a aridez da ausência.
Na segunda história de "Anjos Caídos" este romantismo pulverizado, em cacos de vidro, cede lugar à velocidade e ao burlesco no corpo de He – o rapaz que, de noite, abre à socapa as lojas do bairro de Tsimshatsui. Não é uma excrescência, é a iniciação à queda. O seu momento decisivo é o da morte do pai de He: momento em que o corpo ganha peso e cai, desamparado, no abismo do presente. Só então, verdadeiramente, as histórias se intersectam para desenharem um possível novo começo, como ramagens de uma árvore infinita.
O espaço e o tempo
Não há espaço, só tempo. Os homens habitam em lugares esconsos, junto a vias-rápidas e viadutos de metro sobrepostos. Foi essa rarefacção que levou Wong Kar-Wai a optar pela utilização de lentes de grande angular e a impor à câmara um deslizar permanente para as superfícies espelhadas. Em ambos os casos, o efeito produzido é de distensão. E de distensão e retardamento se faz também o tempo em "Anjos Caídos", como se, de alguma forma, fosse absolutamente necessário refrear a vertigem e a aceleração para deixar ver, destacando-as de um fundo indistinto, quase como num balão de BD, as percepções e os estados emocionais das personagens.
Em entrevista ao Público, por altura da estreia em Portugal de "O Expresso de Chungking", o realizador confessava que a fonte de inspiração para "Fallen Angels" (sua, e de Christopher Doyle, director de fotografia) era um programa radiofónico nocturno de Hong Kong. Nenhuma imagem seria mais justa que essa para o descrever: o filme voga na imponderabilidade, pairante, quase musical.